A Festa
[...]
A casa ficou silenciosa. Tinham ido todos para a Missa do Galo, menos a velha Gertrudes, que estava na cozinha a arrumar as panelas.
E Joana foi à cozinha. Era boa altura para falar com a Gertrudes.
- Bom Natal, Gertrudes - disse Joana.
- Bom Natal - respondeu Gertrudes.
- Gertrudes, aquilo que disseste antes do jantar é verdade?
- O que é que eu disse?
- Disseste que o Manuel não ia ter presentes de Natal porque os pobres não têm presentes.
- Está claro que é verdade. Eu não digo fantasias: não teve presentes, nem árvore do Natal, nem peru recheado, nem rabanadas. Os pobres são pobres. Têm pobreza.
- Mas então o Natal dele como foi?
- Foi como nos outros dias.
- E como é nos outros dias?
- Uma sopa e um bocado de pão.
- Gertrudes, isso é verdade?
- Está claro que é verdade. Mas agora era melhor que a menina se fosse deitar porque estamos quase na meia-noite.
- Boa noite - disse Joana. E saiu da cozinha.
Subiu a escada e foi para o seu quarto. Os seus presentes de Natal estavam em cima da cama. Joana olhou-os um por um. E pensava:
- Uma boneca, uma bola, uma caixa de tintas e livros. São tal e qual os presentes que eu queria. Deram-me tudo o que queria. Mas ao Manuel ninguém deu nada.
E sentada na beira da cama, ao lado dos presentes, Joana pôs-se a imaginar o frio, a escuridão e a pobreza. Pôs-se a imaginar a noite de Natal naquela casa que não era bem uma casa, mas um curral de animais.
«Que frio deve lá estar!», pensava ela.
«Que escuro lá deve estar!», pensava ela.
«Que triste lá deve estar!», pensava.
E começou a imaginar o curral gelado e sem nenhuma luz onde o Manuel dormia em cima das palhas, aquecido só pelo bafo de uma vaca e de um burro.
-Amanhã vou-lhe dar os meus presentes - disse ela.
Depois suspirou e pensou:
«Amanhã não é a mesma coisa. Hoje é que é a Noite de Natal.»
Foi à janela, abriu as portadas e através dos vidros espreitou a rua. Ninguém passava. O Manuel estava a dormir. Só viria na manhã seguinte. Ao longe via-se uma grande sombra escura: era o pinhal.
Então ouviu, vindas da Torre da Igreja, fortes e claras, as doze pancadas da meia-noite.
«Hoje», pensou Joana, «tenho de ir hoje. Tenho de ir lá agora, esta noite. Para que ele tenha presentes na Noite de Natal».
Foi ao armário, tirou um casaco e vestiu-o. Depois pegou na bola, na caixa de tintas e nos livros. Apetecia-lhe levar também a boneca, mas ele era um rapaz
e com certeza não gostava de bonecas.
Pé ante pé Joana desceu a escada. Os degraus estalaram um por um. Mas na cozinha a Gertrudes fazia muito barulho a arrumar as panelas e não a ouviu.
Na sala de jantar havia uma porta que dava para o jardim. Joana abriu-a e saiu, deixando-a ficar só fechada no trinco.
Depois atravessou o jardim. O Alex e a Chiribita ladraram.
- Sou eu, sou eu - disse Joana.
E os cães, ouvindo a sua voz, calaram-se.
Então Joana abriu a porta do jardim e saiu.
[...]
Sophia de Mello Breyner - A noite de natal
17/12/2007
Excerto II de "A noite de natal"
Posted by Ka at 12/17/2007
Labels: A noite de Natal, contos, Sophia Mello Breyner Andersen
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5 comentários:
Oi!
Hoje nem deu para responder ao Oi, nem deu para ler o Post. Amanhã será melhor! Pelo menos deu para deixar um bjinho!
Morgenita,
Não te preocupes :) eu também ando arredia por falta de dsponibilidade.
Obrigada pelo beijinho que soube bem :) e já agora um beijinho e uma noite feliz!
Quando comecei a ler este texto bem me parecia que o conhecia, até que... claro, é da Sophia!! Boa escolha, Ka.
Já agora, agradeço também a tua passagem pelo meu espaço. Volta sempre!!
bjs
Paula,
Benvinda ao BDK!
Adoro Sophia seja em poesia ou prosa e estes contos dela são uma verdadeira delícia!!
Espero que tenhas gostado e voltes sempre :)
Beijinho
ps - Não tens de agradecer pois é um prazer ir ao teu espaço :)
ps2 - Também gosto muito de Catherine Clément e dos 2 livros específicos que também gostas :)
Ka,
Engraçado teres referido a Catherine Clément... para mim, A Senhora é um livro magnífico, assim uma espécie de um filme tendo como pano de fundo todo o século XVI - o grande século! - e a diáspora dos cristãos-novos.
P.S. Voltarei...
bjs
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