06/07/2008

Um texto actual...


"Um povo imbecilizado e resignado, humilde e macambúzio, fatalista e sonâmbulo, burro de carga, besta de nora, aguentando pauladas, sacos de vergonhas, feixes de misérias, sem uma rebelião, um mostrar de dentes, a energia dum coice, pois que nem já com as orelhas é capaz de sacudir as moscas; um povo em catalepsia ambulante, não se lembrando nem donde vem, nem onde está, nem para onde vai; um povo, enfim, que eu adoro, porque sofre e é bom, e guarda ainda na noite da sua inconsciência como que um lampejo misterioso da alma nacional, reflexo de astro em silêncio escuro de lagoa morta.[.] Uma burguesia, cívica e politicamente corrupta até à medula, não descriminando já o bem do mal, sem palavras, sem vergonha, sem carácter, havendo homens que, honrados na vida íntima, descambam na vida pública em pantomineiros e sevandijas, capazes de toda a veniaga e toda a infâmia, da mentira à falsificação, da violência ao roubo, donde provém que na política portuguesa sucedam, entre a indiferença geral, escândalos monstruosos, absolutamente inverosímeis no Limoeiro.Um poder legislativo, esfregão de cozinha do executivo; este criado de quarto do moderador; e este, finalmente, tornado absoluto pela abdicação unânime do País.A justiça ao arbítrio da Política, torcendo-lhe a vara ao ponto de fazer dela saca-rolhas.Dois partidos sem ideias, sem planos, sem convicções, incapazes, vivendo ambos do mesmo utilitarismo céptico e pervertido, análogos nas palavras, idênticos nos actos, iguais um ao outro como duas metades do mesmo zero, e não se malgando e fundindo, apesar disso, pela razão que alguém deu no parlamento, de não caberem todos duma vez na mesma sala de jantar."

Guerra Junqueiro, "Pátria", 1896.

No dia em que se celebra o aniversário da sua morte não resisti a partilhar este, tão actual texto escrito à mais de um século atrás!
E porque seria também o aniversário de Gustav Mahler, aqui fica esta música que de certo lembrará a muitos um belíssimo filme: Morte em Veneza.

10 comentários:

Maria P. disse...

E está tudo dito.

Boa noite e beijoca*

caditonuno disse...

há mais de 110 anos e continua actual.

LeniB disse...

Este texto é mais um bom exemplo do estado da nossa nação: se actual, logo se deduz que pouco ou nada evoluimos....ok...temos internet, telemóveis...CD's... GPS...e depois??? A mentalidade colectiva continua embrutecida!
bjsssss
boa semana

Anónimo disse...

este texto dignifica ainda mais este blog...a música, de facto, deixa-me completamente de rastos.

Michael C.

Ka disse...

Maria,

Eu também acho...infelizmente.

Beijoca e uma excelente semana :)

Ka disse...

Caditonuno,

Sem dúvida que continua não é?

beijinhos e boa semana

Ka disse...

Lenib,

E sabes o que mais me mete confusão? é que por um lado estamo-nos nas tintas para o nosso país e por outro achamos que somos muito bons...onde não somos!

Beijinhos e uma excelente semana

Ka disse...

Michael C.

Simpatia tua só pode :)

Quanto à música é lindíssima não é?
Mas agora vou mudar para uma mais de acordo com o meu estado de espírito ...lol

Beijinhos e uma óptima semana

Patti disse...

Brilhante! Adoro este texto.

Unknown disse...

Vê lá tu, não mudámos nada em 100 anos.

Tive uma professora de português do liceu, que nos sugeria com alguma insistência, que lêssemos Guerra Junqueiro, para experimentarmos uma consciência social e política através das palavras do poeta.

Estávamos em finais da década de setenta e para além da grande admiração que ela tinha por ele, fazia algum sentido, pois estávamos à distância de 100 anos de algumas das obras mais marcantes de G.J.

A noção revolucionária de alguns de nós era nula e dos restantes, era ainda indecifrável, para a realidade social do sítio onde vivia

Já nessa altura, lembro-me de ficar pasmado com a actualidade de ideias que tinham servido de inspiração para a mudança da monarquia pela república, e que se mantinham tão actuais na mudança da ditadura para a democracia

Volvidos mais 40 anos, continuamos a conseguir relacionar tão bem o nosso povo e sistema político estas palavras, uma tristeza

uma beijoca